Marçal Justen Filho, Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP, conhecido pela sua forte referência na área de licitações e contratos públicos brasileira, concedeu uma entrevista exclusiva ao Sollicita sobre o PL 6.814/17, que poderá substituir a Lei 8.666/93; gestão de riscos nas aquisições; planejamento da contratação; falência da licitação na modalidade pregão e sobre mudanças que, na sua opinião, possibilitariam melhorias no sistema de contratações públicas no Brasil.
As perguntas foram elaboradas pela Professora Gabriela Pércio.
Confira:
1. Muito se tem falado sobre o PL 6814/17, que está na Câmara e que, se for finalmente aprovado, substituirá a Lei 8.666. Na sua avaliação, ele saneará os problemas atuais das contratações públicas brasileiras?
Marçal Justen Filho – Eu gostaria de responder que sim. Mas acho que o Projeto não fornece solução para problemas essenciais, com os quais temos convivido há muito tempo. Há aperfeiçoamentos, que são insuficientes. Por exemplo, é uma ilusão supor que aumentar o limite para o seguro-garantia resolveria as dificuldades das licitações públicas. A aprovação desse Projeto – se vier a ocorrer – não resolverá as dificuldades presentes por uma razão fundamental: o Projeto não contempla uma solução adequada para eles! No estado atual das coisas, a licitação não é a solução, é o problema. Porque os fornecimentos entre agentes privados obedecem às leis do mercado – o qual pode ter falhas ou distorções. A licitação é uma invenção estatal de um mercado, cujas regras ignoram os mecanismos de formação de preços. Existe um crescente distanciamento entre as normas licitatórias e os mecanismos de mercado. Logo, o resultado não pode ser eficiente. Muito pior é presumir que o poder político do Estado é suficiente para assegurar contratações vantajosas. Isso não vai acontecer. O planejamento adequado pode reduzir os problemas, mas nunca será suficiente para produzir contratações vantajosas. Dou outro exemplo: entrou na moda defender a adoção de seguro-garantia no valor de 100% da contratação administrativa como a grande solução para os problemas de habilitação. Ora, as pessoas que defendem essa tese não consultaram as empresas de seguro. Não existe, no Brasil, empresa seguradora em condições (ou disposta) a fornecer um seguro dessa ordem. Depois, a seguradora exige uma contra-garantia pelo seguro fornecido. Isso significa que somente poderiam obter seguro-garantia de 100% as empresas que tivessem patrimônio livre onerável. O resultado prático seria a redução radical do número de licitantes. Seguro-garantia de 100% é uma ideia abstrata, que não toma em vista as circunstâncias econômicas nacionais. É mais uma “invenção”, desenvolvida com a maior boa-vontade, mas que na realidade produzirá mais danos do que benefícios.
2.Costuma-se atribuir o fracasso das contratações públicas à falta ou ao mau planejamento. Na sua opinião, é isso mesmo? Quais são, de fato, as razões pelas quais a Administração Pública compra mal?
Marçal Justen Filho – Não existe uma resposta única e uniforme. Existem muitas razões para o fracasso das contratações públicas. A falta de planejamento ou o mau planejamento podem contribuir para os problemas. Mas não são os motivos mais importantes. A modelagem das licitações (e da própria legislação) tem de ser alicerçada no conhecimento econômico. O operador jurídico não detém conhecimento de economia. Por isso, tende a conceber soluções licitatórias e contratuais desconectadas da realidade. Dou um exemplo. Ouvi de um ilustre advogado especializado em licitações a afirmativa de que ele duvidava que esses tais “custos de transação” acarretavam a elevação dos preços pagos pela Administração. Com um certo exagero, é como duvidar da lei da gravidade. Nos últimos quarenta anos, houve uma revolução no conhecimento econômico. Especialmente no tocante à chamada “microeconomia”, que se dedica a analisar a formação dos preços nos mercados. Portanto, a contratação mais adequada somente poderá ocorrer quando a Administração não der as costas ao mercado. Toda a disputa sobre “planejamento” da licitação ignora um dos postulados fundamentais da economia, que consiste na assimetria de conhecimentos. Não é nem que o Estado não queira planejar ou que negligencie o planejamento. O Estado não dispõe de informações suficientes e adequadas sobre o mercado e sobre o objeto a ser executado. O setor privado especializado concentra as informações pertinentes, precisamente por ser “especializado”. A Administração Pública tem conhecimento limitado. Por isso, o seu planejamento tende a ser insuficiente e defeituoso. Isso não significa negar que, muitas vezes, há um planejamento equivocado.
3. A falta de gestão de riscos tem sido constantemente foco de apontamentos do TCU e, no ano passado, a Instrução Normativa Conjunta 01/16-MP/CGU trouxe diretrizes para a implementação da gestão de riscos na Administração Pública Federal. O sr. acha que, dentro da realidade da Administração Pública brasileira, há chances reais de uma gestão de riscos formalizada, processualizada e integrada às tarefas, processos e macroprocessos da organização, incluindo as compras públicas, sair do papel? Na sua opinião, a gestão de riscos é uma prioridade para as compras públicas brasileiras? O que deve ser visto como prioridade para melhorar as compras públicas brasileiras?
Marçal Justen Filho – Acho a referida Instrução Normativa muito louvável. Até posso dizer que se trata de um documento bem redigido. Mas continuamos a supor que a realidade concreta é modificada pela mágica da palavra do legislador! O Brasil enfrenta uma pluralidade de problemas sérios em contratações públicas. Um dos mais graves é a submissão das soluções técnicas às conveniências políticas. O aparato preconizado na IN Conjunta é suficiente para neutralizar a influência do poder político partidário sobre a condução concreta das decisões mais fundamentais? Acho muito improvável. É evidente que, como todo cidadão, sou absolutamente a favor da transparência administrativa e da consagração de mecanismos de compliance, de processualização das decisões e da gestão e de controle permanente. Mas o gigantismo do Estado e a tradição autoritária do governo brasileiro tornam problemático que esses mecanismos operem de modo eficiente. Enfim, como é possível compatibilizar essas regras com as “prerrogativas extraordinárias” da Administração? De todo modo, a questão do risco não apresenta usualmente uma dimensão tão grave no tocante às compras públicas. Nesses casos, raramente a questão do risco é um problema relevante. Porque os contratos de colaboração, aqueles regidos basicamente pelas Leis 8.666 e 10.520, são de curto prazo. Seu objeto pode ser definido de antemão e os riscos envolvidos são razoavelmente previsíveis. Quando a economia é estável, a dificuldade não reside nem na estimativa, nem na partilha dos riscos dos contratos desse tipo. O problema da alocação dos riscos é efetivamente relevante nos contratos cujo objeto é complexo, especialmente quando a execução é diferida no tempo. O grande problema enfrentado, nesses casos, é a variação do próprio conteúdo dos riscos, ao longo da execução de um contrato que envolve variações e necessidade de alterações. Quando há um contrato de concessão de serviço público, com longo prazo de duração, a evolução das circunstâncias pode produzir o surgimento de circunstâncias nunca imaginadas. Dou um exemplo da experiência brasileira. Nos anos 1996 e 1997, a União licitou o arrendamento de terminais portuários. Tomou em vista o tamanho das embarcações então existentes para dimensionar as áreas de atracação. Dez anos depois, os navios tinham crescido de comprimento em quase cem metros. Não havia como atracar e manobrar um desses navios na área prevista nos contratos originais. Essa variação impacta significativamente todas as estimativas contratuais. Tal situação é muito diferente do que se passa numa contratação para execução de serviço ou compra, como no caso da compra de merenda escolar. A prioridade para aperfeiçoamento das compras públicas consiste em reconhecer a assimetria de conhecimentos como ponto de partida e a necessidade de aperfeiçoar os mecanismos de identificação da variação da qualidade e do prestígio ao fornecedor confiável. O modelo licitatório atual acaba incentivando a aquisição de objetos destituídos de qualidade, em que o valor pago – por mais reduzido que o seja – é muito superior à qualidade do objeto fornecido.
4. Na sua opinião, o pregão, que foi visto como uma grande inovação para as licitações brasileiras, com potencial para produzir resultados nunca antes alcançados em termos de economicidade, já dá sinais de fracasso?
Marçal Justen Filho – Sim, inquestionavelmente. E há muito tempo. O grande argumento de defesa do pregão foi a redução dos custos. Ao longo do tempo, tem sido costumeira a divulgação de informações de que o pregão assegurou uma redução média de despesas em torno a 20%. Mas nunca houve questionamento sobre a efetiva vantajosidade das contratações. Ou seja, alguém pode afirmar que a Administração estaria pagando 20% a menos para adquirir um produto com a qualidade equivalente àquela do produto que anteriormente era adquirido por preço superior? Ninguém. Não há informações confiáveis sobre o nível de qualidade dos produtos efetivamente adquiridos mediante pregão. Há muito tempo, eu cunhei a expressão “mutação dinâmica das propostas”. Indica o processo decisório do licitante que vai reduzindo a qualidade do objeto a ser entregue à Administração à medida em que o preço é diminuído no processo competitivo do pregão. A margem de lucro do particular permanece inalterada, o seu custo é reduzido e a Administração recebe um produto imprestável. Esse problema foi descrito pela Economia, há quase cinquenta anos. Chama-se “seleção adversa”. Nas hipóteses em que a qualidade do produto é incerta, a aquisição fundada exclusivamente no critério do menor preço conduz a uma compra desastrosa. O primeiro estudo sobre essa questão foi publicado em 1970 e é de autoria de George Akerlof (que, aliás, recebeu o Prêmio Nobel de Economia, basicamente em virtude desse estudo). Ou seja, o pregão é adequado para contratações em que a qualidade do objeto seja invariável ou irrelevante. É a famosa questão do “objeto comum”. Ocorre que a difusão do pregão afetou o próprio mercado de objetos comuns. Hoje, é difícil afirmar que água mineral, para fins de pregão, seja um produto efetivamente comum: é necessário exigir uma amostra para avaliar o produto “água mineral” ofertado pelo licitante. Portanto, se a Administração necessitar de uma prestação dotada de alguma qualidade, é muito problemático valer-se do pregão. É verdade: o pregão (especialmente eletrônico) é muito cômodo e muito rápido. Mas se o argumento for esse (rapidez e comodidade), a solução é eliminar a licitação. Muito mais cômodo e rápido é consultar um sítio de vendas e realizar a compra. Aliás, por que não substituir o pregão eletrônico por um procedimento já aprovado pelo mercado?
5. Poderia citar alguns problemas do sistema atual de licitações e suas possíveis soluções?
Marçal Justen Filho – São muitos. O mais grave é o modelo de contratação pública, que adquire contornos insuportáveis quando a entidade administrativa está sujeita ao regime de precatório. Isso configura custos de transação muito elevados. O efeito é a elevação dos preços, ou o surgimento da indústria das alterações contratuais, ou ambos. A primeira providência consiste em eliminar o regime específico para as contratações administrativas. Mais precisamente, é indispensável disciplinar de modo muito preciso a extensão e o exercício dos poderes reconhecidos às partes. E o essencial é impor à Administração o efetivo dever de cumprir as suas obrigações. A Administração não obterá propostas sérias e vantajosas enquanto não for reconhecida no mercado como uma parceira confiável. Quem exige seriedade e honestidade tem de agir de modo equivalente.
Em segundo lugar, há a problemática da habilitação. Como é possível subordinar a participação em licitações à comprovação da observância das regras sobre trabalho de menores e à apresentação de certidão negativa da Justiça do Trabalho? Não significa que eu discorde da proteção aos menores e aos trabalhadores. O ponto não é esse. O fundamental é reconhecer que a habilitação em licitações não se relaciona com essas questões. É indispensável tornar a habilitação algo útil. Eu não estou defendendo a liberação ampla e ilimitada da participação de qualquer sujeito na licitação. Aliás, muito pelo contrário. A experiência do pregão é bastante ilustrativa do descabimento de eliminar requisitos de habilitação e contratar um sujeito qualquer para fornecer para a Administração Pública. Dispensar exigências para habilitação não é algo suficientepor si só para produzir contratações vantajosas. Uma alternativa seria a criação de procedimentos de certificação dos interessados em executar o objeto. A ideia não é minha. É de Carlos Ari Sundfeld.
Em terceiro lugar, é indispensável criar mecanismos de fiscalização da regularidade do objeto executado para fora do âmbito da Administração Pública. O Estado brasileiro, em muitos casos, não tem recursos nem para custear a viagem dos servidores para o local em que o objeto está sendo executado. É muito mais simples atribuir essas tarefas a um terceiro. Alguém dirá que isso envolve a privatização de funções públicas. A crítica não é válida, antes de tudo porque todos os governos brasileiros, desde 1990, tem recorrido à privatização. A recente Lei de Portos legitimou os portos privados. O transporte coletivo rodoviário interestadual deixou de ser serviço público. Enfim, não se trata de uma questão ideológica, mas da constatação de que o Estado não dispõe de condições de desempenhar tudo. Como decorrência, verifica-seo desperdício de recursos públicos, a ampliação dos litígios e a dificuldade em se obter propostas vantajosas.
6. Como vê um sistema ideal de contratações públicas para o Brasil?
Marçal Justen Filho – Não há resposta para essa indagação. Quando muito, posso fazer algumas sugestões, tal como o fiz ao longo desta entrevista. No meu ponto de vista, o sistema atual de contratações públicas do Brasil é um reflexo de uma sociedade fundada sob a noção de privilégios e de imunidades. Com um certo exagero, eu afirmaria que não há como reformar o sistema de contratações públicas sem alterar o conjunto das relações de poder político no Brasil. Sendo menos ambicioso, é necessário aproximar o sistema de contratações públicas dos mecanismos de mercado. Isso envolve uma avaliação fundada fortemente na eficiência. Sou defensor da legitimação da contratação administrativa pelo resultado – respeitadas as exigências éticas, como é evidente. Se for comprovado que a solução prática adotada resultou num contrato satisfatório, com um preço compatível com o mercado, isso é louvável. O foco da legislação atual é no meio: cumprir formalidades, bater carimbos, juntar documentos. Reputa-se que a licitação teve sucesso não por ter assegurado a compra de um produto de qualidade por preço razoável, mas simplesmente por ter observado um número enorme de formalidades inúteis. Isso não funciona e não vai funcionar nunca.